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ANTES DE UMA PRESIDENTA, UMA MULHER: AS NOSSAS FERIDAS EXPOSTAS

  • Colaboração: Domitila de Paulo
  • 5 de abr. de 2016
  • 5 min de leitura

A tentativa de invalidar a democracia bateu na porta logo após a posse de Dilma ter sido oficializada. Em rasos três meses de mandato, a primeira manifestação contra a presidente foi instaurada e, a partir daí, desembrulhada como presente grego: a bomba relógio com som das batidas das panelas da elite brasileira. As sinfonias agudas entre panelaços e noticiários que endossavam o ódio diário foram se alastrando. Ódio esse não de um governo, recentemente iniciado, ou por ilegalidade, mas pelo maior crime que nós poderíamos cometer: ser uma mulher no poder.


Assim, Dilma virou a bruxa, vagabunda, vaca, puta e louca. Ela se tornou o adjetivo e o sujeito da culpa de tudo o que há pior. Os argumentos que vemos pró-impeachment não tem haver com a sua política, mas por um conjunto de motivos nada comprovados, materiais e invasões ilegais. O que está por de trás desse cenário é um grande bastidor de misoginia. Não estamos falando das ações de erros ou acertos de uma presidente. Estamos falando de quando conseguimos chegar a algum degrau que antes só os homens alcançavam, e eles quererem nos empurrar de lá. É como dizer para o garoto “vai perder para uma garota, é?”, enquanto a menina vencedora nem recebe visibilidade por ter vencido a partida. Pior que isso, é o reflexo da sociedade violenta e agressora para com as mulheres.


Dilma é desrespeitada não somente como profissional, mas principalmente por ser mulher. O espelho da sociedade misógina que quer calar e matar a mulher seja fisicamente quanto emocionalmente, quer matar o mandato da presidente e utiliza das mesmas armas.


IstoÉMisoginia


“Gaslighting é a violência emocional por meio de manipulação psicológica, que leva a mulher e todos ao seu redor acharem que ela enlouqueceu ou que é incapaz. É uma forma de fazer a mulher duvidar de seu senso de realidade, de suas próprias memórias, percepção, raciocínio e sanidade.” Think Olga




Gaslighting é um termo usado atualmente, mas a ação vem de sempre. Eu prefiro dizer que é o violento ato de manipular ou desqualificar uma mulher a fim de fragiliza-la. Porque é mais fácil entender lembrando-se de como isso acontece diariamente, com todas nós, do que tentar explicar essa expressão. Somos as loucas, malucas, descontroladas, piradas, surtadas, somos as dramáticas, exageradas, as descompensadas, as incapazes. Para eles, nós somos fora do patamar normal que é ser um homem. Nossos hormônios na tpm ou menopausa são usados para nos inferiorizar sobre o raciocínio logico. A nossa sexualidade e vida afetiva é ferramenta para julgarem que somos mal-amadas e mal-comidas o suficiente para não sermos funcionárias bem humoradas ou “chefes boazinhas”.



Na minha infância eu ouvia meu pai dizer que ele, por meios das leituras de artigos científicos, descobriu que a minha mãe tinha um distúrbio causado por um tipo de tpm e isso era a causa para um descontrole em determinados dias. Por vezes crescendo, me sentia ansiosa em muitas situações e pensava estar começando a viver do mesmo mal que ela. Foi quando eu descobri que os hormônios alterados nela se chamavam cuidar dos filhos, da casa, das contas, da família, das relações, da profissão e por último dos sentimentos dela. Ela sofria do mal de ser uma mulher negra e ter que administrar tempo e energia para ser chefe exigente, boa profissional, articuladora, acadêmica e militante. Entendi que o tal distúrbio era, na verdade, ela exercer algum poder como matriarca.


Tanto o sagrado feminino quanto as habilidades e qualificações são tomadas pela opressão de gênero. Que nos distancia tanto do poder individual de nós mulheres com nós mesmas quanto aos nossos papéis sociais. Exercemos o trabalho familiar e econômico da maioria das famílias brasileiras. Ou seja, estamos em uma sociedade que tanto pratica o matriarcado para sobrevivência das famílias de menor renda, quanto sofre pela prática do patriarcado para a morte e exploração das mesmas famílias.


Diferente da cultura patriarcal colonizadora, na maioria das religiões afro-brasileiras as mulheres tem poder fundamental tanto pelo culto às Yabás que provém vida ao mundo material que vivemos, quanto no poder da sabedoria e troca entre as líderes ou representantes religiosas. Isso porque além das Orixás cultuadas, historicamente as mulheres desempenharam o poder de comerciantes e de resistência (resiliência) da sua cultura, já que foram lentamente alforriadas antes dos homens escravizados. Assim nas tradições de matrizes africanas exigem naturalmente o respeito e reverência às mulheres pelo seu sagrado, por ser fonte de vida e viverem em construção colaborativa entre o coletivo.


“Ao aprofundarmos o candomblé como comunidade negra e o papel de liderança da mulher, necessitamos mergulhar na filosofia africana (Nagô e Bantu), que é permeada pelos componentes religioso e cultural. No Candomblé existe o fundamento, que corresponde à chave do conteúdo simbólico, do código místico, para o entendimento da experiência religiosa e mística. O domínio, o uso e transmissão do Axé (força vital), do conhecimento, do poder e da sabedoria se dão pela mãe-de-santo e pelas pessoas mais velhas de santo, que fazem mediação entre sagrado e profano.” Joaquim, Maria Salete. O Papel da Liderança Religiosa Feminina na Construção da Identidade Negra.


“Outro papel desenvolvido pelas mulheres na cultura Yoruba é a administração dos reinos. Na organização dos reinos fons e nagô-iorubá, as mulheres desempenharam um papel ativo, eram elas quem administravam o palácio real, assumindo os postos de comando mais importantes, além de fiscalizarem o funcionamento do Estado.”

“Percebe-se, assim que o papel da mulher iorubá vai além do desempenhado nas atividades econômicas. Ela é mediadora não só das trocas de bens econômicos, como também das de bens simbólicos. O lugar social ocupado pela mulher iorubá, sem sombra de dúvidas, possibilita-lhe o exercício de um poder fundamental para a vida africana.” Ìgbà Ábídí – Africa e Diáspora: Política, Cultura, Religião.


O Brasil precisa refletir urgente sobre a sua ancestralidade, e a compreensão de como as mulheres caminharam tanto historicamente quanto particularmente, nas suas lutas e nos seu sagrado, sejam eles quais forem, para compreender o respeito que sempre nos faltou. Respeito esses fundamentais aprendidos com as mulheres mais velhas, as mães, avós ou tias ou vizinhas. O que está acontecendo no cenário político, não é só a tentativa de um golpe de estado, mas um golpe de gênero. Estamos vivenciando e assistindo as agressões contra uma mulher, que são televisionadas e publicadas diariamente para ataca-la. Tão simbolicamente por ela estar representando nosso gênero no poder executivo, quanto tangivelmente por atingir de fato uma de nós. Estamos feridas publicamente, sem qualquer respeito ao cargo que estamos ocupando e aos direitos básicos que deveríamos ter como seres humanos.


“O ni gbogbo ohun ti enia ba n se

Em tudo que fazemos


Ti ko ba fi ti obinrin jun um

Se não garantimos o lugar das mulheres


O ni ko le seese...

Nada vai funcionar


O ni ki won o maa fi iba fun obinrin

Devemos reconhecer o poder das mulheres


O ni ti won ba ti iba fun obinrin

Quando reconhecermos o poder das mulheres


Ile aye yio maa toro

O mundo vai ser pacífico.”


Ìgbà Ábídí – Africa e Diáspora: Política, Cultura, Religião.


 
 
 

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