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THAMYRA THÂMARA DE ARAÚJO

  • Arte: Ana Maria Sena
  • 9 de abr. de 2015
  • 6 min de leitura

Relatos fragmentados de uma Calanga do Cerrado a lá Carioca do Subúrbio:

Da graduação ao mestrado

Chegar até aqui foi um processo de mergulho primeiramente na minha própria trajetória. Para entender as histórias que me rodeavam eu precisei entender a minha própria história e as minhas escolhas narrativas sobre ela. Quando eu era adolescente morava com minha mãe nos fundos da casa da minha avó, sabia que nossa família era pobre, sabia que algumas pessoas me olhavam diferente pelas roupas que vestia e por minha mãe ser solteira, mas não problematizava isso. Na época o meu convívio social mais intenso era na igreja e enxergava a vida apenas com o viés religioso. Não era de uma família de pais militantes, era de uma família religiosa na qual a vida era pensada de uma única perspectiva.

Eu era pobre, mas pensava que Deus não fazia acepção de pessoas então não pensava muito sobre isso, achava que era algo natural, talvez uma questão de esforço e oportunidade e não uma questão social. Quando eu era criança na igreja algumas vezes cheguei a ir ao banheiro chorar, porque minhas amigas riam do meu cabelo e das minhas roupas. Mas não pensava na questão racial e não entendia a forma como eu era tratada por determinadas pessoas da igreja como racismo. Eu mirava nas minhas colegas brancas de cabelo liso e queria ter aquele cabelo, aqueles olhos azuis, achava que ia ser mais bonita. Na escola até a oitava série eu me relacionava muito pouco com as pessoas, era uma aluna mais calada me via como diferente em alguns aspectos, muito por causa da religião.


Quando chegou o ensino médio mudei de escola e fui estudar em outra escola pública no Plano Piloto, centro da cidade, conhecida por ser uma das melhores. Era uma escola bastante plural, a maioria era de bairros pobres e periféricos da cidade, mas mesmo entre os pobres existia uma diferença de poder de consumo. Além da juventude de periferia também tinha alunos que moravam no centro da cidade, filhos de pais porteiros e outros eram de família classe média que havia perdido dinheiro e agora precisavam estudar em escola pública. Porém a pluralidade era mesmo vista nas roupas e tribos de cada um, tinha a galera do Rock, as patricinhas, os hippies, as meninas da igreja Assembléia com aquelas saias enormes, os nerds e uma infinidade de crenças e subjetividades.


No ensino médio deixei de ser calada e andava em todos os grupos, tinha muitas amizades, mas tinha maior identificação com a galera evangélica. Logo no primeiro ano fui convidada para participar do grêmio estudantil na área de comunicação da chapa rival, eu tinha a minha própria chapa, mas ela tinha perdido a eleição, era nosso primeiro ano na escola e poucas pessoas conheciam a gente, tinha feito uma oratória bacana e por isso o convite para compor a chapa vencedora.


Foi no grêmio estudantil e participando intensamente das atividades escolares que os debates foram aparecendo, os debates políticos sobre cotas na universidade (na época ainda não tinha sido aprovada), eu girava em torno de todas essas discussões tentando entender um mundo que era meu, mas ao mesmo tempo era diferente da forma com que eu tinha construído ele na minha mente. Em casa não tinha abertura para debate político, entre os amigos da igreja também não, a escola era um lugar único cheio de complexidades que eu ainda não conseguia entender, mas que me atraia. A igreja tinha sido responsável pela maioria das minhas relações afetivas até ali e pela construção do meu caráter, porém tinha me castrado culturalmente e me colocado numa caixinha. Eu não sabia até o momento, mas foi o primeiro passo para abri-la.


No último ano do ensino médio, junto com minha melhor amiga da época, Priscila, resolvemos tentar o vestibular para Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), eu não sei muito bem como isso tinha nascido na gente, mas eu lembro que tinha uma questão missionária em torno, a gente queria evangelizar os “traficantes” da favela e ajudar a diminuir a venda de drogas. É engraçado porque quando me lembro disso quase não me identifico mais por outro lado consigo lembrar-se daquela menina que eu era e do que me motivou.


Nossos pais não nos apoiavam e achavam nossa ideia bastante maluca, fizemos por nós mesmas. Vendemos brigadeiro na escola o ano todo e conseguimos arrecadar o dinheiro necessário para pagar nossa passagem de avião para o Rio de Janeiro e a taxa de inscrição para a prova do vestibular. Ficamos na casa de um casal de idosos conhecidos do meu pai durante o final de semana da prova e depois voltamos para casa. O resultado veio meses depois, tínhamos passado e agora? Minha mãe não me deixou ir e minha amiga acabou desistindo. Eu fiquei mal por meses, acabei desistindo de tentar UNB e fui estudar comunicação social numa faculdade particular de Brasília. Hoje eu olho e penso, que bom que eu não fui naquela época, era bem imatura. Brasília apesar de ser a capital era (é) uma cidade do interior, eu conhecia todos os trajetos, me sentia segura, a vivência ali era seguro porque eu não ultrapassava os limites do muro que fui criada.


A metanóia, mudança de mente, começou na faculdade. Foi na faculdade que comecei a problematizar as ideias, os conceitos e minha própria vivência. Na época foi uma mudança tão progressiva e cotidiana que quase nem percebi, hoje olhando de fora vejo que a faculdade foi esse start maior. Foi na faculdade que comecei a problematizar a doutrina da minha igreja, foi na faculdade que tive meu primeiro namorado de outra religião, foi na faculdade que deixei o cabelo solto e enrolado e me vi como negra, foi lá que aprendi sobre o poder da comunicação e comecei a pensar na favela e em todo imaginário em torno dela.


E não por acaso foi na faculdade que desisti de querer ser pastora e missionária e resolvi trabalhar com comunicação comunitária. Todas essas intenções e reflexões me levaram para o Rio de Janeiro em agosto de 2011, logo depois da formatura e lá eu encontrei um “mundo” diferente do que eu pensava, porém semelhante com o que eu era. Em Brasília eu era pobre, aqui eu me encontrei como favelada, eu era negra, aqui eu era “militante” negra. Em quase cinco anos de vivência no Rio de Janeiro, vivi minhas próprias identificações, “descobri” identidades, optei por determinados pontos de vistas e narrei minha (s) história(s) escolhendo as tintas que mais aprecio.


Minha mãe com 33 anos, eu com 15 anos, adquirimos a primeira casa própria. Eu me lembro da felicidade de não ter que morar mais nos fundos da casa de ninguém, poder ter bichinho de estimação, colocar o som alto, pintar o quarto da cor que eu queria. Todas aquelas coisas que eu vivia sonhando. Foi a minha primeira conquista da liberdade, da minha mãe foi quando ela deixou de trabalhar no Ponto Frio e passou em um concurso público e nossa vida melhorou. Saímos do Gama e fomos morar num condomínio recém-criado do lado de Santa Maria, cidade satélite/ favela. No começo compramos um apartamento, depois vendemos e conseguimos comprar uma casa e minha vida na rua acabou. Eu morei dos 15 anos até os 22 no condomínio Residencial Santos Dumont e só tive duas amigas lá, a Larissa e a Nathália.


Quando eu morava no Gama a relação entre a vizinhança era bem parecida com a do Complexo do Alemão, mas nunca teve tiroteio na rua, nunca vi um amigo meu ou conhecido morto, nem por policial nem por vendedor de droga a varejo, confesso que fui ver pela primeira vez fuzil e dormir ao som de tiroteio depois que mudei para o Rio de Janeiro. Por isso meu respeito e admiração pelos meus amigos que têm permanecido firmes na militância e resistência no território em que vivem. Eu sei que certas experiências são de quem viveu e por mais que a gente tente mensurar, se aproximar e até pesquisar nada se compara ao relato de quem vivenciou, de quem sentiu na pele.


Assim que me mudei para o Complexo do Alemão conheci o Foto Clube Alemão. Eles tinham começado as atividades na favela, as primeiras caminhadas, encontro fotográficos, estavam nos primeiros passos. De primeira me interessei pelo projeto, primeiro porque minha pesquisa lá na graduação falava sobre as fotografias produzidas por fotógrafos denominados “populares” e outra porque sempre gostei de fotografia. Quando abriu o processo seletivo na UFF, pensei na hora em fazer meu projeto sobre eles.


E logo depois descobri que um dos idealizadores do coletivo morava na minha rua. E junto com a descoberta me veio então à dúvida, no começo eu tive medo que minha vida pessoal que estava totalmente associada ao campo pudesse atrapalhar a minha pesquisa. Foi então que eu comecei a fazer um mergulho dentro de mim mesma, a entender a minha história e a refletir sobre o caminho que tinha me levado até ali. Afinal eu não era carioca, não tinha nascido no morro, mas era pobre e me sentia favelada.



 
 
 

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