MARGA LEDORA
- Phran Noctuam
- 19 de mar. de 2015
- 12 min de leitura

Marga Ledora, 55 anos, é artista visual, preparadora, revisora de textos freelance e blogueira. Mora em Campinas – SP e foi super atenciosa, cautelosa e dedicada em contribuir com suas experiências artísticas e de vida.
Como nasceu a ideia de fazer um blog? E sobre o que ele aborda? Além dele você tem outros projetos? Quais?
Estou “gestando” uma série de desenhos, pode ser que eu faça pinturas também, com casas. Tenho juntado esboços, fotografias de casas, material que guardo numa pasta de inspirações. É um tema que estou empenhada, interessada. Já tenho obras com casas feitas em outras épocas.
No ano passado comecei a trabalhar num livro, durante uma oficina de foto-livro de artista, coordenada por Fernanda Grigolin, com desenhos digitais. Não sei se chamo de sonho ou de projeto o de fazer a seleção e editar as fotografias que fiz, em 2013, de graffiti e lambe-lambe em tapumes e muros da cidade onde moro, Campinas (SP).
Ali, revendo o conjunto de fotos, há duas fotos de pessoas negras, uma delas é uma mulher negra e a outr aé uma adolescente. Esse contato com o AFRONTA, as perguntas, isso está movimentando sentimentos, me abrindo uma reflexão sobre ser negra, artista negra, e mesmo o fato de eu estar revendo fotografias como essas duas de que falei, de negras, e notando que esse tema perpassa, sim, a minha arte, só não de uma maneira mais consciente, buscada, planejada.
Ainda não sei o que pode vir daí, estou me sentindo estimulada a fazer algo com essas e outras fotografias de negros.
Bem, já ia me esquecendo de falar do blog. Ele surgiu para compartilhar o que faço de arte, mas acabou tomando outro rumo. Passei a escrever também sobre artes visuais, artistas, técnicas e materiais artísticos, e mais sobre fotografia, as oficinas culturais de que participo, recomendo exposições de arte.
Adoro escrever. Estou reformulando o blog desde o ano passado e tem aumentado consideravelmente o número de visitantes. Há muita gente que gosta de arte, que faz, estuda arte, meu blog é interessante para eles. Faço questão de escrever sobre artistas menos conhecidos do público, como o escultor Dan Fialdini. Tem sido gratificante, estimulante escrever ali, ter criado um espaço de arte na internet para dividir com outras pessoas o que sei, penso e faço.
Pratica o feminismo em seu trabalho?
Não. Não senti necessidade de levar para o que faço de arte essa questão. Não penso que, por ser mulher, sou “obrigada” a tratar do feminino ou de negritude na arte. Sou mulher e sou uma mulher negra. Eu não faço arte “engajada”. E não é para ser aceita ou passar por branca, como já ouvi falarem. Aliás, foi recentemente numa entrevista de Moisés Patrício e Jaime Lauriano, o primeiro é o criador da intervenção/performance Presença Negra, uma atividade em prol da visibilidade de artistas negros. E por falar em presença negra, onde vou é como mulher e como negra e me posiciono sempre que a questão vem à tona ou mesmo coloco o tema em discussão.
Como é visto pelos demais?
Recebo, de um modo geral, reconhecimento pela arte que faço, o trabalho como revisora também. Mesmo sendo negra eu sou reconhecida como competente revisora, talentosa como artista visual, inteligente nas minhas opiniões, guerreira nas minhas lutas, que não se restringem a questões de racismo, de injustiças sociais, mas tenho uma visão mais ampla, englobo até mesmo a luta contra maltrato de animais etc. Também não me restrinjo ao que acontece só no Brasil de injustiça, de preconceito.
Sua arte fala sobre feminismo ou mulher negra?
Eu não faço certas coisas pensando em feminismo, o que me faz falar de uma pessoa é a qualidade do que ela faz, seu caráter, suas ações. No meu blog já escrevi sobre várias artistas mulheres. Não fiz conta para saber se são em maior número do que as postagens sobre homens artistas.
Acredito que, pensando no talento como critério para escrever sobre artistas no blog e o que sinto em relação à obra do (a) artista, o fato de eu escolher essas mulheres já é um ato de valorizá-las duplamente, como artistas e como mulheres.
Escrevi sobre uma artista negra, Rosana Paulino, em 2010, porque eu queria que ela e sua obra, que é voltada às questões negras, da mulher negra, fosse conhecida por mais pessoas, as que visitam o blog. Isso tem sido muito especial, porque é bastante lida, está frequentemente na lista das 10 mais lidas do dia.
Quero fazer uma nova postagem sobre Rosana. Atualmente, depois de assistir entrevistas dela, tenho uma nova visão da obra dela, do papel dela como artista negra. Hoje eu percebo mais claramente que sua arte só é como é por conta de ela tratar da escravidão negra, do racismo, das desigualdades entre negros e brancos, sabe, toda essa temática que Rosana traz a público com seu talento, seu desejo de transformação, de conscientizar mesmo.
Quando e como você começou a fazer arte? Sua família apoiou? Quais foram as dificuldades?
Quando me interessei por arte era adolescente ainda, mas tem uma coisa estranha, eu gostava de arte, só que não me dedicava a desenhar fora da escola, da situação de fazer trabalho escolar.
Tinha uma amiga que desenhava, eu colori alguns desenhos dela. No momento de prestar vestibular eu comuniquei meus pais sobre o desejo de ser artista plástica. Meu pai veio com a fala tradicional de que arte não daria dinheiro. Meu receio de passar por dificuldades e a insegurança sobre ter talento me levaram a mudar de ideia. Quis fazer arquitetura, meu pai disse que não era regulamentada... me queria engenheira civil. Minha mãe me alertou sobre pensar bem porque era a minha vida. Eu queria fazer algo de que gostasse, optei por letras, o inglês me agradava. Terminei estudando linguística na Unicamp.
Desisti da arte, mesmo eu rabiscando uns desenhos na borda de apostilas. Só retomei o desejo em 1986. Estava no mestrado e comecei a fazer aulas de desenho com a artista Eliane Borges. E, para resumir, abandonei o mestrado poucos anos depois disso para fazer arte e trabalhar como revisora de texto para editoras.
Não tenho a experiência de ver meus desenhos recusados por eu ser mulher ou negra. As dificuldades que enfrento são de outro tipo, já tive, por exemplo, oportunidade de expor em alguns espaços alternativos, mas o investimento maior fica para o artista. Oferecem paredes e uma data para a abertura e você toma conta do resto, desde o vinho, os convites, banner, ir a jornal, rádio pedir entrevista com você... as taças. E a porcentagem (em torno de até 30%) em caso de venda de alguma obra.
Tenho um problema sério com essas coisas práticas da vida, o ideal era ficar trancada no ateliê, criando e ter alguém de confiança que cuidasse dessa parte de divulgar, de bater em porta de galeria. Isso eu tenho de aprender, a vender o meu peixe.
Que linguagem artística você desenvolve? Você se enquadra em algum estilo já definido? Qual?
Artes visuais. Eu me chamei de desenhista até começar a fazer fotografia em 2010, dali em diante, passei a me apresentar como artista visual, porque fico mais à vontade para fazer o que for me interessando dentro dessa área.
Olha, estilo, não sei se tenho algo que possa nomear o que faço além da técnica, normalmente o desenho ou a fotografia. Eu mudo bastante, se for olhar para trás, tem coisas muito diferentes. Abstrato geométrico, não faço figura humana, nem paisagens. Fiz algo arquitetônico. Há os desenhos de objetos, coisas inexistentes. Eu sinto necessidade de ver algo concreto, isso em oposição a imagens formadas por manchas de cores, por exemplo.
Na fotografia, gosto de objetos também, arranjos de objetos. E aguardo o momento de fazer retratos, penso que ser na fotografia que a figura humana vai encontrar seu lugar na minha arte.
Eu vou fazendo, não me ocupo em nomear o que faço, nem construir teorias a respeito da arte que faço. Estudo, leio, penso, vejo, faço, escrevo sobre a minha arte e a arte de outros artistas visuai no blog, mas não tenho formação acadêmica na área.
Sofreu preconceitos? Se sim, com foi?
Sim, o que me acontece é que mostro meus desenhos e fotografias a pessoas que poderiam me “abrir” caminho no mundo das artes e só ficam nos elogios, não me dão uma chance.
Isso é repetitivo, até procuro não levar para o lado do preconceito, não quero ser uma artista que tem sua arte exposta unicamente por ser negra, para a instituição ou pessoa não passar por preconceituoso, uma vez que o mundo das artes é masculino, ou racista. Eu tenho talento e sou mulher e sou negra.
Minhas cunhadas são sempre brancas, passei por humilhação causada por meu pai, que era negro, ao defender a segunda mulher de meu irmão, me “ofendeu” de negra. As pessoas se enganam ao pensar que o racismo vem só dos brancos contra negros. Os negros introjetam o racismo e fazem coisas como o meu pai fez comigo.
Qual seu grande projeto?
Até o momento eu não tenho projeto para mudar a questão da mulher, da mulher negra. Como artista, não creio num projeto desse tipo no que diz respeito ao meu fazer arte, acho ótimo quando outros artistas se posicionam já nas obras que fazem. Eu não vou fazer arte com viés negro, com temas negros, temas sobre a situação da mulher negra para ser aceita, para que vejam que me importo com essas questões e que sofro com elas. Não saberia tornar arte o que me ocorreu com meu pai e minha cunhada, ou com o rapaz que não pôde me namorar porque sua mãe era racista.
O que vejo é que a minha inserção no mercado de arte passa pela cor de minha pele e que as dificuldades parecem aumentadas quando percebo que vou estar praticamente sozinha uma vez que há uma cisão entre os negros artistas.
No momento em que quem não faz arte tocando explicitamente nas questões de negros, de mulheres negras é considerado negro que se passa por branco, fica tudo mais difícil para mim. Vou ser chamada de negra que faz arte para branco, de alienada...
Há poucos dias soube que Sônia Gomes, artista plástica negra, vai participar da Bienal de Veneza como única pessoa brasileira a ser convidada para a exposição principal. A arte dela já foi taxada de “coisa de negro” antes de ela ir aos EUA, ser considerada artista e voltar como tal ao Brasil. Não estou achando na fala dela sobre sua arte menção à discriminação contra mulher negra. É algo estético, de linguagem de arte, é emocional, não é de protesto, denúncia. Eu considero isso válido, justo que ela, eu e outros artistas não façamos da arte um panfleto. Não se pode obrigar negras a fazer isso, como as artistas brancas não o são das coisas ruins que ocorrem com brancos.
Sônia é negra, vai às exposições (re)vestida com sua pele negra, que já foi motivo de muito sofrimento especialmente por ser discriminada dentro da família, de mãe negra com pai branco. Eu me pareço com Sônia, vou revestida de minha pele negra. Minha palavra vai materializar essas questões, não as imagens que faço.
Sente que houve melhora nas área de artes para mulheres e negros?
Na entrevista que mencionei antes, ouvi falar em uma espécie de cota para negros artistas visuais. Sou a favor de cotas nas universidades.
O que noto é que, nas gerações posteriores à minha, os artistas estão discutindo muito o que veem nas galerias, estão mais atentos e agindo mesmo, como com a Presença Negra nas galerias mais importantes da cidade de São Paulo. Os artistas olham para a vida e o que sofrem e estão fazendo performances contundentes, como Michelle Mattiuzzi com MerciBeaucup Blanco.
Essas ações têm tido uma repercussão maior, o que acaba melhorando a situação d@ negr@. A mídia está sendo levada a cobrir essa presença negra nos eventos e não me refiro só à performance criada por Patrício, apesar de o destaque seja dado ao branco ainda que na galeria haja a abertura de exposições de dois artistas, um deles sendo negro.
Negros e brancos estão discutindo mais o que passam @s negr@s, as possibilidades de mudar a situação. Não tem mais como nos calar!
As pessoas te vêem diferente ou dão opiniões sobre seu empoderamento?
Sou respeitada pela minhas opiniões, talvez eu intimide um pouco por ter estudado (Linguística, Unicamp), não sou vista como ignorante, despreparada. Não sou militante de nada, ataco o que é injusto, violento, preconceituoso, racista.
Percebo que quando abordo as questões de racismo a coisa não rola muito no meio em que tenho mais relações que é o Facebook. Eu quase não tenho amig@snegr@s nem no FB nem fora dele.
Em casa, sou a única para quem faz sentido falar de problemas de negros. Praticamente ignoram, não acham relevante conversar a respeito. Para alguns dos meus parentes racismo não existe, é coisa da cabeça da pessoa. Ela pensa tanto que sofre ou vai sofrer racismo porque acaba “atraindo” racista, claro que já tentei explicar, esclarecer, mas não obtive sucesso.
Estou bastante isolada como negra que sou. Háoutras questões no meu caminho, ser mulher e negra é uma faceta, tem ainda a questão de não ser artista jovem e não ter formação acadêmica em artes visuais, são dois fatores que filtram a entrada no mundo das artes (galerias, museus, salões de artes, não sei como são as residências de arte...).
Para ser sincera, tenho me lançado bem pouco nas investidas para conquistar um espaço para minha arte.
Você ressaltou que sua obra não se restringe a falar sobre a mulher negra, nos fala um pouco da sua obra? O que você tem feito e o que ela aborda?
Minha arte não fala de mulher negra, não fala de mulheres, nem de homens, nem de brancos também. É uma arte feita por uma artista visual, que sim é negra, uma mulher negra.
Quem notou algo de África no que faço, por usar cores terrosas, foi um amigo, Pedro Cagnazzo, que é arquiteto, professor de design de interiores, além de apaixonado por arte, a quem mostro o que faço e conversamos sobre.
Mas eu não sei dizer por que as uso fora o motivo de gostar, de elas combinarem entre si. São o que se chama de tons baixos de algumas cores, isso fica mais claro se eu disser que não uso vermelho vivo nos desenhos, mas um bem escuro. Busco beleza em uns, harmonia em outros, deixo fluir o desenho, que costumo dizer que surge de diálogos entre mim, os materiais e o próprio desenho, o processo de fazer. Sinto que não tenho controle total quando desenho. Já quis controlar, usando régua, esquadro, milimetrando, já tive a ilusão de controle, perdi e agora misturo tudo, um pouco de controle, um deixar fluir, uma conversa comigo mesma também entra no diálogo maior.
Não fico pensando em nenhuma mensagem, nenhuma lição para colocar na imagem e ser vista, lida por ninguém. Faço pra mim. Terminado o desenho, me torno expectadora. Daí vejo se aquilo me significa algo. Há vezes em quenão gosto, que o diálogo não se dá e passa muito tempo até que eu olhe de novo e me entenda com o desenho.
Esse significar não quer dizer que eu consiga traduzir sempre com palavras o que a minha obra me diz. Ela pode me dizer para fazer outro desenho, uma variação dela, com um elemento que não teve espaço nela.
Não tenho a pretensão de determinar um modo de ver o desenho ou a foto que faço. Acredito que cada um tem uma bagagem de vida, que essa, por sua vez, lhe um olhar para as coisas. A gente lê imagens o tempo todo, muito se fala do excesso de imagens por conta da fotografia feita por quem tem câmera fotográfica, sobretudo a digital, ou celular. Com minha arte, o que espero é que quem vê seja tocado de alguma maneira, seja pelas formas, seja pela cores, linhas, mesmo a textura do papel. Ouso querer sensibilizar, não deixar as pessoas indiferentes às imagens. Há desenhos muito detalhados, de pequeno formato, então você precisa se aproximar dele para ver melhor. Nisso vai um tempo, o ritmo da pessoa muda, né?
Tenho uma série de desenhos que fiz para cartões no final de 2000 e estão no meu fotolog, feito pelo artista visual Dio Pinez. Eu os fiz para mim, mas como eram cartões para venda, pensei um tanto em quem veria. Tem uma paisagem, casas, abstratos, coisas que não existem.
O que não me canso de sentir é a surpresa que as pessoas me causam ao gostar do que faço pra mim e mostro a elas. É sempre mágico.
Espero que ninguém veja como arrogância eu dizer que faço pra mim as obras. É que se eu tentasse pensar no que as outras pessoas gostariam de ver, as cores de que mais gostam, os temas, isso me deixaria numa situação difícil. Cada pessoa tem seu gosto, suas questões. Não me proponho esse trabalho. Imagino que se eu tentasse isso, fazer um perfil de expectador e desenhar de acordo com ele, minha arte se tornaria desinteressante tanto para mim, quanto para quem a visse.
Você tem alguma frase ou pensamento que quer compartilhar com outras mulheres, negras, artistas que possa ser um incentivo, motivação ou
inspirador?
O que eu sempre busquei e continuo buscando é autoconhecimento. É ser eu mesma. Isso tem um custo, a gente não vai se compreendida por todos, nem aceita por todos ou por aquelas pessoas que gostaríamos que nos aceitassem como somos. A gente tem de se amar um bocado!
Não tenho sido o melhor exemplo de artista negra. Nesses dias em que ando pensando em como dar uma visibilidade legal ao que faço, reconheço que andei lutando menos do que podia por essa artista que sou, que demorei a entender que sou.
Acredito que não devemos antecipar o não das pessoas a quem pediríamos ajuda, orientação para seguir o caminho das artes, ou qualquer outro. Eu sinto que andei me intimidando antes mesmo de tentar abrir espaço para minha arte.
VEJA AS FOTOS DO TRABALHOS DA LUANA NA NOSSA GALERIA
ACESSE O SITE DE MARGA LEDORA
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